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Introdução

Definição

Hipertiroidismo designa o excesso de hormonas tiroideias em circulação por secreção aumentada pela glândula tiroideia. Tirotoxicose é o estado metabólico e clínico originado pelo excesso de acção das hormonas tiroideias nos tecidos-alvo. Na criança, a maior parte dos casos de tirotoxicose são causados por hipertiroidismo. (1)

O hipertiroidismo pode ser congénito ou adquirido, e ocorre sobretudo por doença tiroideia (primário), sendo rara a origem hipotálamo-hipofisária (central). (2)

Epidemiologia

O hipertiroidismo é raro em pediatria. A Doença de Graves (DG) é a causa mais frequente (≥95% dos casos), com prevalência de 0,02% (1:5000). A incidência anual é maior em adolescentes (3,0:100.000), no sexo feminino (5:1) e em crianças com outras doenças auto-imunes. (2)

A DG pode ocorrer na grávida (0,1-2,7%) e no recém-nascido filho de mãe com DG (1,5-20%). (3)

História Clínica

Anamnese

O risco de DG neonatal deve ser identificado durante a vigilância das gestantes com DG, para prevenir a instalação das manifestações clínicas neonatais. Condicionam alto risco para DG neonatal: título de TRAbs no 3º trimestre alto (> 400% do valor normal) ou desconhecido; tratamento materno com anti-tiroideus no 3º trimestre; tiroidectomia ou ablação por iodo radioactivo recentes e antecedentes familiares de hipertiroidismo neonatal. (3)

O hipertiroidismo fetal pode associar-se a taquicardia, taqui-disritmias, bócio e restrição de crescimento intra-uterino – alterações que podem ser identificadas por ecografia. Pode ocorrer hidrópsia fetal e aborto. (3)

Os sintomas que devem levantar a suspeita de DG neonatal sem identificação prévia incluem: irritabilidade; noção de hiperfagia com ganho ponderal insuficiente ou perda ponderal; diarreia; “olhar espantado”; pele húmida e quente. Habitualmente surgem a partir das primeiras 48h. Tendo havido terapêutica antitiroideia materna, os sintomas podem ser adiados até cerca do 10º dia de vida. (2,3)

Na criança, o início é insidioso e o curso clínico é variável, podendo decorrer meses até ao diagnóstico. Os sintomas determinados pelo aumento de atividade adrenérgica e estado de hipermetabolismo incluem: palpitações, tremor, sudorese, aumento do apetite, diarreia e perda ponderal. A perturbação do sono, irritabilidade, labilidade emocional e hiperactividade motora podem perturbar o rendimento escolar. A maior parte das crianças apresenta bócio. Os sintomas oculares específicos da DG são mais discretos na criança do que no adulto (exoftalmia, dor ocular, sensação de corpo estranho, diplopia). Pode ocorrer discreta aceleração do crescimento linear, dependente da duração do hipertiroidismo, e avanço de idade óssea sem compromisso da altura final. No sexo feminino pós-menarca, pode ocorrer oligomenorreia ou amenorreia secundária. (2,5)

 

Exame objetivo

À observação, os sinais de DG no recém-nascido incluem: peso de nascimento LIG; tremor; hipertermia; bócio; exoftalmia; hepatoesplenomegalia; icterícia; manifestações cardiovasculares (taquicardia, arritmia, insuficiência cardíaca, hipertensão arterial e pulmonar) e evidência de hipermetabolismo (hiperfagia com má progressão ponderal, diarreia, hipersudorese, flushing, taquipneia). (2,3,5)

Na maioria das crianças com DG, observa-se e palpa-se bócio sem nodularidade. A exoftalmia por oftalmopatia de Graves (presente em 25-60%) ocorre por inflamação autoimune, nem sempre surge simultaneamente ao hipertirodismo e geralmente é ligeira. (4) Pode objectivar-se taquicardia, aumento da pressão de pulso e diminuição da resistência vascular periférica. A fibrilhação auricular é rara na criança. (2,5)

A crise tireotóxica ou tempestade tiroideia é um evento agudo raro e potencialmente letal, com falência multiorgânica. Pode ter como fatores precipitantes: cessação abrupta de terapêutica antitiroideia, intervenção cirúrgica ou doença grave intercorrente em criança com hipertiroidismo não controlado; ablação com iodo radioativo. (2,5)

Diagnóstico Diferencial

O hipertiroidismo em idade pediátrica é mais frequentemente primário e adquirido, sendo a doença de Graves a causa predominante (≥95%). Trata-se de uma doença autoimune, em que ocorre activação da glândula tiroideia por auto-anticorpos dirigidos ao receptor da TSH, de atividade predominantemente estimulatória (TRAbs), com consequente aumento de produção de hormonas tiroideias. Os TRAbs (IgG) atravessam a barreira feto-placentar, podendo provocar hipertiroidismo fetal e neonatal. A etiopatogenia da DG baseia-se em suscetibilidade genética e mecanismos endógenos e ambientais ainda não completamente esclarecidos. (2,5)

A presença de oftalmopatia é fortemente sugestiva de DG, mas a sua ausência não exclui o diagnóstico. Laboratorialmente, os TRAbs são detetáveis em 60-94% dos casos.

Outras causas menos frequentes de hipertiroidismo primário adquirido na criança incluem (2):

  • Tiroidite com disrupção tecidular: Na fase de destruição inicial por qualquer processo inflamatório da tiroide pode ocorrer libertação de hormonas tiroideias previamente sintetizadas (fase tireotóxica):
  • tiroidite crónica auto-imune (ou de Hashimoto): 5 -10% das crianças apresentam fase tireotóxica (“Hashitoxicose”); distingue-se da DG por TRABs negativos, duração mais curta e ausência de oftalmopatia.
  • tiroidite subaguda (ou de Quervain): rara na criança; originada por infeção vírica; clinicamente caraterizada por bócio doloroso.
  • Nódulo tiroideu solitário hiperfuncionante; Bócio tóxico multinodular: causas raras de hipertiroidismo na criança; geralmente identificadas por avaliação imagiológica perante hipertiroidismo clínico e/ou laboratorial e com TRAbs negativos.

Devem ter-se em conta na prática clínica as causas farmacológicas de hipertiroidismo, nomeadamente: amiodarona, lítio, interferão, heparina, contrastes iodados.

Entre as causas mais raras na criança, refiram-se:

  • Resistência periférica às hormonas tiroideias (mutação do gene do recetor das hormonas tiroideias).
  • Hipertiroidismo central: adenoma hipofisário secretor de tirotropina (TSH); resistência hipofisária às hormonas tiroideias.
  • Tireotoxicose iatrogénia ou factícia: excesso de aporte de levotiroxina

Exames Complementares

Patologia Clínica

Perante suspeita de hipertiroidismo devem dosear-se os níveis séricos de tirotropina (TSH), tiroxina livre (T4L) e triiodotironina livre (T3L). Na impossibilidade de dosear as formas livres, poderão pedir-se os doseamentos de T4 e T3 totais.

No hipertiroidismo primário estabelecido encontra-se elevação dos níveis de T4L e T3L, com TSH diminuída (por feedback negativo). Em fases precoces pode haver apenas diminuição de TSH, com T4L e T3 normais (hipertiroidismo subclínico). No hipertiroidismo central, a TSH está aumentada.

Sendo a DG a causa mais frequente de hipertiroidismo, deve fazer-se o doseamento de TRAbs – confirma o diagnóstico de DG e tem utilidade no seguimento e prognóstico.

No recém-nascido filho de mãe com DG, a orientação depende do nível de TRABs maternos no 3º trimestre: se negativos, não necessita de avaliação laboratorial; se TRAbs elevados ou desconhecidos, devem dosear-se TRAbs no cordão umbilical. Os recém-nascidos de risco devem ter monitorização clínica e avaliação de função tiroideia, de acordo com protocolos específicos. (3)

Imagiologia

A ecografia tiroideia informa acerca das dimensões, padrão de vascularização e eventuais lesões nodulares.

Perante hipertiroidismo primário com TRAbs negativos, pode estar indicada a realização de cintigrafia tiroideia (123I ou 99Tn). (2) Na DG ocorre captação difusamente aumentada; nas tiroidites em fase tireotóxica a captação está difusamente diminuída; o nódulo tiroideu solitário hiperfuncionante e o bócio tóxico multinodular (raros) têm padrões de captação característicos.

Nas crianças com hipertiroidismo central, deve ser efectuada uma ressonância magnética cerebral e avaliados os outros eixos hormonais hipofisários.

Tratamento

Algoritmo clínico/terapêutico

Os objetivos da terapêutica na DG são a normalização da função tiroideia e o controlo dos sintomas. A terapêutica deve ser orientada em consulta de Endocrinologia Pediátrica.

DG na criança: Existem três opções terapêuticas para controlo do hipertiroidismo – fármacos antitiroideus; ablação com iodo radioactivo e cirurgia (tiroidectomia).

Os fármacos antitiroideus são a primeira linha de tratamento na criança. São a única opção que permite eventual controlo em eutiroidismo, visto que o iodo radiativo e a tiroidectomia causam hipotiroidismo definitivo, com necessidade de terapêutica de substituição com levotiroxina para a vida. (1,2,4)

O metibasol (Tiamazol®) é o antitiroideu de primeira linha na criança. A dose inicial é de 0,2 a 0,5 mg/Kg/dia, em 1 ou 2 tomas/dia (dose máxima 30mg/dia). Após início da terapêutica, deve reavaliar-se laboratorialmente a função tiroideia (TSH, T4L, T3L) após 2 semanas, e posteriormente a cada 6 semanas até normalização das hormonas tiroideias, que pode demorar algumas semanas a meses. A supressão da TSH pode manter-se até alguns meses após a normalização de T4L e T3. (2,4)

Os efeitos adversos minor incluem rash cutâneo, artralgias, mialgias, náuseas e alteração do paladar – pode descontinuar-se alguns dias até remissão dos sintomas e recomeçar. Constituem efeitos adversos major: agranulocitose – neutrófilos

Antes do início do tratamento deve obter-se hemograma (com particular atenção à contagem de neutrófilos) e enzimas hepáticas (ALT, AST, GGT). Pretende-se obter valores de base, e identificar eventuais desvios prévios ao início da terapêutica – pode haver ligeira diminuição de neutrófilos e aumento de enzimas hepáticas em consequência do hipertiroidismo. Estes parâmetros devem ser reavaliados periodicamente.

O propiltiouracilo está contraindicado na criança pelo risco de hepatotoxicidade grave, sendo apenas considerado em casos seleccionados perante alergia ou efeito adverso major do metibasol, ou tempestade tiroideia (tem início de ação rápido e inibe a conversão periférica de T4 em T3). O propiltiouracilo é o fármaco de escolha no 1º trimestre da gravidez, no qual o metibasol está contraindicado por risco de embriopatia.

As opções de tratamento definitivo só devem ser executadas em centros com experiência, e podem ser consideradas caso a caso em crianças que não atingem a remissão após pelo menos 2 anos de terapêutica com metibasol ou perante efeito adverso major da terapêutica. A ablação com iodo radioativo (131I) está contra-indicada em crianças com menos de 5 anos, e existem indicações de dose específicas para crianças 5-10 anos para minimizar o risco oncológico. A tiroidectomia tem indicação nas crianças com menos de 5 anos ou com bócios volumosos (pior resposta a iodo radiativo).

Para controlo dos sintomas adrenérgicos, está indicada a utilização de betabloqueantes. O propanolol (0,5-2,0 mg / kg / dia, 3-4 tomas / dia) tem o efeito adicional de inibir a conversão periférica de T4 em T3. Nas situações de maior gravidade (tempestade tiroideia), podem utilizar-se beta-bloqueantes por via endovenosa e glucocorticóides (diminuem a secreção de hormonas tiroideias e a conversão periférica de T4 em T3).

DG neonatal: Tratamento de acordo com protocolos hospitalares. A intervenção terapêutica de primeira linha é feita também com um fármaco antitiroideu (metibasol 0,25-1 mg / Kg / dia po de 8/8h), em associação com um betabloqueante (propranolol 0,5-2 mg / Kg / dia po de 8/8h). Perante dificuldade de controlo da função tiroideia, pode associar-se glucocorticoides e/ou iodo inorgânico (1 gota de solução de Lugol [126 mg de iodo / mL] de 8/8h, durante 1-2 semanas). O iodo inibe a organificação e secreção de hormonas tiroideias. (1,3,4)

Evolução

DG neonatal: A remissão espontânea ocorre habitualmente entre 3-12 semanas, à medida que os TRAbs desaparecem de circulação no recém-nascido / lactente. A reavaliação laboratorial deve orientar a descida progressiva das doses terapêuticas. Ocasionalmente, o hipertiroidismo pode persistir por períodos mais longos. A mortalidade é de 20% se não tratada. (2,3)

DG na criança:

Após pelo menos 2 anos de terapêutica com metimasol, está indicada a suspensão gradual da terapêutica reduzindo progressivamente a dose, sob controlo laboratorial. Há remissão quando a criança se mantém em eutiroidismo pelo menos 1 ano após a suspensão de terapêutica antitiroideia. (4)

A percentagem de remissão na criança é variável em diferentes séries, entre 25 a 65%. (2, 5) São factores preditivos de remissão: crianças mais velhas, menor gravidade à apresentação, bócio de menores dimensões, maior Z-score do IMC, criança púbere e diminuição de níveis de TRAbs.

Uma vez atingida a remissão, pode haver recidiva, em percentagem muito variável de acordo com séries publicadas (3-47%). (5) A recidiva ocorre mais frequentemente no 1º ano após suspensão da terapêutica e a positividade dos TRAbs está associada a maior probabilidade de recidiva. (2)

A DG implica monitorização da função tiroideia para a vida, com avaliação da TSH e FT4 a cada 6 meses até ao final do crescimento e puberdade e posteriormente com frequência anual. (2,4)

Recomendações

  • A principal forma de prevenção da DG neonatal é a vigilância adequada das gestantes com DG, com a avaliação indispensável de: função tiroideia (trimestral); TRAbs (1º e 3º trimestres); ecografias seriadas para avaliação do crescimento fetal e sinais específicos.
  • As crianças que tiveram DG neonatal devem ser monitorizadas para detepção e intervenção precoce de eventuais sequelas, nomeadamente: craniossinostose, e problemas comportamentais ou de desenvolvimento psico-motor. (5)
  • Nas crianças com DG, deve ser considerado o rastreio de outras doenças autoimunes.
  • As jovens em idade reprodutiva devem ser informadas dos riscos de DG neonatal e embriopatia relacionada com os fármacos antitiroideus, sendo disponibilizado aconselhamento acerca de contracepção.

Bibliografia

  1. Ross SD, Burch HB, Cooper DS et al. 2016 American Thyroid Association Guidelines for Diagnosis and Management of Hyperthyroidism and Other Causes of Thyrotoxicosis. Thyroid. 2016;26:1343-1421.
  2. LaFranchi S. Clinical manifestations and diagnosis of hyperthyroidism in children and  adolescents. Post TW, ed. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate Inc. (acesso em 2017)
  3. Van der Kaay DC, Wasserman JD, Palmert MR. Management of Neonates Born to Mothers With Graves’ Disease. Pediatrics. 2016;137(4):e20151878
  4. Rivkees SA. Pediatric Graves’ disease: management in the post-propylthiouracil Era. International Journal of Pediatric Endocrinology. 2014:10
  5. Srinivasan S, Misra M. Hyperthyroidism in Children. Pediatrics in Review 2015;36:239-248

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