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Introdução

Definição

A dor abdominal crónica (DAC) define-se como uma dor que tem uma duração de mais de 1 mês. Esta definição engloba a dor abdominal recorrente (DAR) que se define como a presença de pelo menos 3 episódios de dor abdominal suficientemente intensa que interfira nas actividades de vida diária durante um período não inferior a 3 meses consecutivos, de causa não orgânica.

Epidemiologia

A dor abdominal crónica é uma patologia cada vez mais frequente, sendo um motivo frequente de consulta. Estima-se que afecte cerca de 13 a 17% da população pediátrica, sendo que apenas 5 a 10% destes têm doença orgânica. Tem maior prevalência no sexo feminino.

Classificação

A DAC, atendendo à etiologia divide-se em orgânica, funcional ou psicossomática.

Os critérios de Roma III classificam a DAC segundo a idade de apresentação. Antes dos 4 anos de idade, a DAC considera-se um diagnóstico e deve ser considerada à partida como orgânica. Após os 4 anos de idade, é considerada como sintoma e pode ser de causa orgânica, funcional ou psicossomática.

História Clínica

Anamnese

Uma anamnese completa é essencial para o correto diagnóstico de DAC. Para isso é necessário estabelecer-se uma relação de confiança entre médico, doente e familiares e compreender que a dor que o paciente sente é real. O principal objetivo da anamnese é distinguir se a dor é orgânica, funcional ou psicossomática. Deve ter-se sempre em conta que a principal causa de DAC é funcional, mas que quanto mais nova a criança (principalmente se menor de 4 anos), mais provável é ser de causa orgânica. Salienta-se ainda que as causas de DAC não são mutuamente exclusivas, e podemos ter uma DAC com componente funcional e orgânico.

Tabela 1. Sinais de alarme na anamnese

Localização não peri-umbilical

Irradiação para dorso ou para membros

Dor persistente nos quadrantes superiores ou inferior direito

Mudanças nas características da dor

Sangue nas fezes

Diarreia noturna

Náuseas ou vómitos persistentes, nomeadamente biliares

Disfagia

Despertar noturno com a dor

Febre inexplicável

Artrite, artralgia

Anorexia

Antecedentes familiares de DII, doença celíaca ou úlcera péptica  

Características da dor: localização, tipo de dor (cólica ou contínua), irradiação, intensidade, duração, frequência e altura do dia, fatores agravantes ou aliviantes, sintomas associados.

Devem ser questionados os sinais de alarme (ver tabela 1)

Hábitos alimentares: tipo de dieta, ingestão de fibras, produtos lácteos, dietas de exclusão

História psicossocial: eventos traumáticos/stressantes na vida, estrutura familiar, ambiente escolar

Antecedentes familiares: história familiar de síndrome intestino irritável, intolerâncias alimentares, dispepsia, doença psiquiátrica

Especificamente nos adolescentes perguntar história sexual, características de ciclos menstruais e consumo de drogas/álcool.

Exame objectivo

Tabela 2. Sinais de alarme exame objetivo

Perda de peso, alteração velocidade de crescimento, atraso pubertário

Dor localizada nos quadrantes superior e inferior direitos

Hepato-esplenomegalia

Distensão ou palpação de massa

Alterações perianais (fistula, abcessos, fissuras)

Dor à palpação ângulo costovertebral

Hematoquézias

Um exame objectivo minucioso é essencial e deverá começar logo no início da consulta, nomeadamente pela avaliação do estado geral da criança, nível de conforto/desconforto, posição que adopta ou fácies de dor.

Assim como na anamnese, no exame objectivo há sinais de alarme a que devemos estar especialmente atentos (tabela 2).

Os sinais vitais devem ser avaliados, nomeadamente a tensão arterial (uma vez que hipertensão arterial é mais a favor de causa orgânica).

O peso, altura, velocidade de crescimento e estadio pubertário devem ser avaliados.

Se há distensão abdominal, a palpação abdominal é de grande importância e pode dar-nos informações diagnósticas. Permite a pesquisa de massas ou organomegalias, e permite inferir se há regiões dolorosas. O sinal de Carnett deve ser testado uma vez que nos permite diferenciar dor visceral de dor parietal com alta sensibilidade e especificidade. Se positivo sugere dor abdominal de origem parietal (é um teste positivo, quando num doente em posição supina, se pressiona o ponto mais doloroso, e se solicita ao paciente que contraia a musculatura abdominal e simultaneamente flita o cabeça e tronco, com agravamento da dor).

Deve também fazer parte do exame objetivo a visualização da região perianal e toque rectal.

Diagnóstico Diferencial

A causa de DAC orgânica é uma dor abdominal com causa objetivável mediante anamnese, exame objetivo e meios auxiliares de diagnóstico. Deve ser sempre considerada em primeira instância em crianças com idade inferior a 4 anos. A presença de sinais de alarme quer na anamnese quer no exame objetivo devem remeter-nos para este tipo de dor. Contudo a presença dos mesmos não é patognomónica de doença orgânica, assim como a sua ausência não a exclui.

Na tabela 3, estão as causas de doença orgânica quer de origem gastrointestinal (GI) como não GI.

Tabela 3 – Causas de doença orgânica

Origem GI

Causas mais frequentes

  • Obstipação / encopresis
  • Alterações ácido-pépticas: refluxo gastro esofágico, esofagite, gastrite, úlcera, infecção H. pylori)
  • Doença celíaca
  • Malabsorpção de hidratos de carbono
  • Infecções parasitárias

Causas menos frequentes

  • Doença inflamatória intestinal
  • Doença eosinofílica

Causas raras

  • Bezoar
  • Doença hepato-biliar e pancreática
  • Malrotação tardia, invaginação, síndrome compressão da artéria mesentérica superior

Origem não GI

Causas mais frequentes

  • Dor músculo-esquelética
  • Pneumonia (da base)
  • Dismenorreia

Causas menos frequentes

  • Infecção urinária
  • Doença inflamatória pélvica
  • Endometriose

Causas raras

  • Púrpura de Henoch-Schonlein
  • Gravidez
  • Abcesso do Psoas
  • Alterações genito-urinárias: hímen imperfurado, hidronefrose, nefrolitíase, estenose pielo-ureteral

Na DAC por somatização, os sintomas referidos pelo doente não podem ser explicados por doença. No decurso da investigação, é excluída doença orgânica. Para a etiopatogenia desta dor contribuem três tipos de factores: predisponentes (como exemplo, crianças perfeccionistas, a idade, ansiedade da separação da figura materna, ambiente familiar, sobreprotecção), precipitantes (nomeadamente acontecimentos de vida marcantes como perda de um familiar, fracasso escolar, nascimento de irmão, patologia semelhante em outro familiar) e de manutenção (ganho primário ou secundário, alterações cognitivas ou perceptivas, co-morbilidades associadas)

DAC funcional ou dor abdominal recorrente define-se como um conjunto de sintomas GI crónicos ou recorrentes que não podem ser explicados mediante alterações estruturais ou analíticas. O diagnóstico é difícil e desafiante. Deve ser considerada quando excluída doença orgânica e somatização. Este tipo de dor divide-se em 4 categorias, segundo os critérios de Roma III: Dispepsia funcional, Síndrome intestino irritável (SII), Enxaqueca abdominal e Dor abdominal funcional / Síndrome de dor abdominal funcional.

Dispepsia funcional

Dispepsia funcional segundo os critérios de Roma III, define-se como uma dor ou desconforto no epigastro (que inclui saciedade precoce, enfartamento pós-prandial, eructação, náusea/vómitos) que ocorre pelo menos uma vez por semana, pelo menos nos 2 meses prévios ao diagnóstico. É uma dor que não alivia com a dejecção nem se associa a alteração da consistência ou frequência das fezes.

Síndrome de Intestino Irritável (SII)

Define-se como dor ou desconforto abdominal associado a 2 ou mais das seguintes característica (em pelo menos 25% das ocasiões):

  • Alivia com dejecção
  • Associado a alteração da frequência das dejecções
  • Associado a alteração da forma das dejeções (obstipação vs diarreia)

De salientar que outros sintomas favorecem também o diagnóstico de SII como: frequência de dejecções anormal (mais de 4 por dia ou menos de 2 por semana), consistência anormal das fezes (duras, líquidas ou brancas), dificuldades na defecação (esforço excessivo, urgência defecatória ou sensação de evacuação incompleta) ou distensão abdominal. No SII deve ser excluída doença celíaca.

Enxaqueca abdominal

É diagnóstico se presentes as seguintes três caraterísticas, pelo menos 2 vezes nos últimos 12 meses:

  • Episódios de dor abdominal peri-umbilical intensa, paroxísticos com duração de pelo menos uma hora;
  • Intervalos sem dor de semanas a meses;
  • Dor que interfira com as atividades de vida diária;
  • Dor associada a pelo menos dois dos seguintes sinais ou sintomas: anorexia, náuseas, vómitos, cefaleia, fotofobia ou palidez.

Dor abdominal funcional/ Síndrome de dor abdominal funcional

Para diagnóstico de dor abdominal funcional devem estar presentes todos os seguintes: dor abdominal contínua ou episódica pelo menos 1 vez por semana, pelo menos nos 2 meses prévios ao diagnóstico e sem critérios para as outras causas de DAC funcional.

Para ser considerado síndrome de dor abdominal funcional devem estar presentes os critérios de dor abdominal funcional, em pelo menos 25% do tempo e estar presente um dos seguintes:

  • Interfere com as atividades vida diária;
  • Outros sintomas somáticos como cefaleia, dificuldades em dormir ou dor nos membros.

Exames Complementares

Uma história clínica detalhada e um exame físico minucioso permitem estabelecer, na maioria dos casos, uma causa de DAC com elevado nível de suspeição. Assim, os meios auxiliares de diagnóstico devem ser pedidos apenas de acordo com a suspeita clínica.

Salienta-se que se os sintomas e sinais de alarme (tabela 2 e 3) estiverem ausentes, os meios auxiliares de diagnóstico são pouco rentáveis e não influenciam o prognóstico da DAC.

Além disso, não nos devemos esquecer que meios auxiliares de diagnóstico em excesso, causam grande ansiedade nas crianças e pais, e estabelecem um grau de incerteza que reforça as queixas.

Caso sejam efectuados, hemograma e bioquímica incluindo ALT, creatinina, ferritina, IgA, anticorpo transglutaminase, proteínas totais, albumina e proteína C reactiva, velocidade de sedimentação. Sedimento urinário e urocultura. No que se refere às fezes, parasitológico de fezes. Em termos de estudo imagiológico, considerar ecografia abdominal e pélvica.

O estudo de doença celíaca não deve ser pedido como primeira linha, exceto no SII, uma vez que apenas 1 em cada 134 crianças têm doença celíaca. A pesquisa de H. pylori não deve ser pedida.

Se necessário como segunda linha, o estudo deverá incluir serologias para doença celíaca, amilase e lipase, TSH e T4 livre, teste de hidrogénio para pesquisa de H. pylori, teste do suor e calprotectina nas fezes.

Exames mais invasivos como endoscopia, colonoscopia com biópsia do trato GI, phmetria, estudo contrastado do intestino, manometria anorrectal, TAC, RMN e laparoscopia devem apenas ser pedidos por subespecialistas, nomeadamente gastroenterologistas pediátricos.

Tratamento

O tratamento deve ser realizado consoante a causa de DAC.

Se DAC de origem orgânica, o tratamento deve ser de acordo com a sua causa.

Se psicossomática, pode ser pedida consulta de Pedopsiquiatria. O Pedopsiquiatra em conjunto com o Pediatra orientarão o tratamento.

Se funcional, o principal objetivo é estabelecer uma relação de confiança com a criança e pais, sendo a educação familiar um pilar fundamental. Esta não deve ser subvalorizada e deve ser iniciada logo na primeira avaliação, especialmente se a suspeição for alta.

A explicação de patofisiologia pode aliviar as preocupações da criança e dos pais em relação aos sintomas e permite também que estes estabeleçam as suas próprias expectativas em relação à doença. Enfatizar sempre que acreditamos que a dor é real, mas explicando que não existe doença grave subjacente.

Assim, o tratamento é multifactorial e na generalidade inclui:

  • Medidas dietéticas e percepção dos factores desencandeantes (produtos sem lactose ou sem glúten não se mostraram eficazes, e não devem ser iniciados sem diagnóstico para deficiência em lactase tipo adulto ou doença celíaca);
  • Tratamento farmacológico (está provado que o benefício é escasso. Deve ser pensado em casos graves ou que não respondem a outras formas de tratamento. Devem ser realizados por períodos curtos, no máximo de 2 semanas);
  • Medidas psicossociais (distracções, técnicas de relaxamento muscular).

Especificamente nos vários tipo de dor abdominal funcional:

Na dispepsia funcional, o placebo tem alta taxa de eficácia. Os anti-inflamatórios estão contra-indicados e determinados alimentos que desencadeiem ou agravem os sintomas devem ser evitados (nomeadamente picantes ou alimentos que provoquem relaxamento do esfíncter esofágico inferior, como a cafeína, o chá e o chocolate). Pode-se aconselhar-se refeições mais pequenas e mais frequentes. Se a dor persistir, pode fazer-se prova terapêutica com uso de inibidores da bomba de protões (num curso de 4 a 6 semanas) e sucralfato. Nos casos de enfartamento, náusea ou vómito pode em casos excepcionais prescrever-se ondasetron. O uso de antidepressivos tricíclicos em doses baixas pode ser considerado em última linha.

De uma maneira geral, no tratamento do SII, também o uso de placebo tem altas taxas de sucesso. O uso de probióticos (L. rhamnosus e L. reuteri) parece não ter efeito na intensidade e na frequência da dor. Alimentos que desencadeiem os sintomas podem ser evitados ou explicado, nos adolescentes, que podem ingerir mas que estejam à espera que desencadeia o sintoma e faço a gerência se o prazer de o comer é superior ao incómodo. Novos fármacos, com elevado custo, para o SII podem ser usados em casos pontuais.

Na variante de obstipação, deve aumentar-se o aporte de fibras e mudar hábitos de defecação, deve defecar sempre que tenha vontade, não adiar e ter condições de defecação, por exemplo, apoio de pés. Na maioria das vezes, a introdução de laxantes osmóticos, alivia os sintomas, pelo que devem ser introduzidas cedo, se as mudanças na dieta não forem eficazes.

Na variante de diarreia, deve limitar-se a ingestão de hidratos de carbono (HC). Recentemente, sugeriu-se que uma dieta pobre em oligo-, di- e monossacarídeos mostrou que reduzia os sintomas de SII. Isto inclui restrição de fruto-oligossacarídeos (como por exemplo trigo, cebola e alho) e de galactossacarídeos (legumes).

O uso de antidepressivos pode ser considerado como última linha. Se variante obstipante deve ser usado a imipramida, no caso de diarreia a amitriptilina uma vez que tem acção colinérgica forte diminuído a dor, o sono e a diarreia.

Os espasmolíticos podem ser considerados se cólicas intensas.

Na enxaqueca abdominal, o tratamento é de suporte e preventivo. Deve evitar-se certos tipos de alimentos e bebidas (nomeadamente com cafeína). Outros estimulantes devem ser evitados como alterações nos hábitos de sono, stress, luzes brilhantes ou jejum prolongado.

Em pacientes com episódios frequentes, a medicação profilática com propanolol é uma opção. O sumatriptano também pode ser usado se dor e náusea associados.  

Na dor/síndrome funcional abdominal, a intervenção nos fatores psicossociais é o mais importante com ou sem uso de antidepressivos tricíclicos (nomeadamente o escitalopram).

Evolução

A DAC, nomeadamente da dor abdominal funcional, é um desafio quer diagnóstico, quer terapêutico e isso deve ser explicado às crianças e aos seus familiares.  

O prognóstico é geralmente bom, dado que não existe doença orgânica associada.

Todavia, a dor pode persistir durante vários anos. Além disso, a sintomatologia pode ser frequente e intensa, o que pode interferir negativamente na qualidade de vida e ter grande impacto na família e na história psicossocial da criança.

Recomendações

Pode ser útil pedir aos pais ou mesmo às próprias crianças e adolescentes um calendário da dor, em que se descreva as características e circunstâncias de aparecimento da dor, uma vez que pode ajudar bastante a estabelecer o diagnóstico.

Deve ser ponderado o uso de meios auxiliares de diagnóstico e só devem ser pedidos de acordo com o tipo de suspeita clínica.

O tratamento nem sempre é necessário uma vez que a evolução de DAC na maioria das vezes é favorável.  

Glossário

DAC - Dor abdominal crónica: dor que tem uma duração de mais de 1 mês.
DAR - Dor abdominal recorrente: presença de pelo menos 3 episódios de dor abdominal suficientemente forte que interfira nas atividades de vida diária durante um período não inferior a 3 meses consecutivos, de causa não orgânica.
DAC orgânica: dor abdominal com causa objetivável.
DAC psicossomática: os sintomas referidos pelo doente não podem ser explicados por doença.
DAC funcional: conjunto de sintomas GI crónicos ou recorrentes que não podem ser explicados mediante alterações estruturais ou analíticas.

Bibliografia

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